ABRUPTO

29.9.14


O DIA UM DO ANO ELEITORAL 


 1. Hoje começa o ano eleitoral de 2015. O PS passou a partido de oposição. 

 2. Porque é que eu digo que o PS não tem sido um partido de oposição, mesmo apesar do radicalismo verbal do seu antigo secretário-geral? Por coisas como esta: na última semana antes das eleições primárias, houve um encontro secreto entre o secretário-geral da UGT e o primeiro-ministro. Segundo diz o oráculo governamental, Passos Coelho convenceu o secretário-geral da UGT a aceitar o acordo sobre o salário mínimo. Tudo quanto é ministro, do primeiro ao último, incluindo o ministro-viajante Paulo Portas foi lá à concertação social (que eles desprezam todos os dias, a não ser quando têm a UGT no bolso) para marcar a grande vitória do governo. As fontes do governo diziam que era fundamental haver um acordo antes do final do processo eleitoral no PS. Percebe-se porquê. O secretário-geral da UGT é um dos principais executantes da política de Seguro, de que foi um dos mais activos apoiantes, prestou-se ao timing propagandístico do governo e à substância de um acordo que fragiliza a segurança social, a mesma que o governo usa como pretexto para as suas previsões neo-malthusianas. É mais um exemplo do que aconteceu nos últimos três anos. 

 3. A história desta campanha é muito interessante de todos os pontos de vista, incluindo até, imaginem, o filosófico. Não interessará a ninguém, mas poucas vezes se viu melhor exemplo do que é o ruído do mundo e daquilo que Weber descreveu há muito: a maioria das acções de um politico tem o efeito exactamente contrário do que era pretendido. Ou dito de outra maneira: Seguro tomou várias decisões pelas piores razões do mundo e o efeito perverso dessas decisões foi positivo. Positivo para a democracia portuguesa e positivo para o PS. Que se cuide quem não quiser ver que o PS teve uma das poucas vitórias junto da opinião dos portugueses que é de índole político-partidária. Já não havia disso desde os anos de brasa da revolução. Havia vitórias e derrotas políticas, ligadas a personalidades, mas uma vitória que pudesse ser assacada a um partido enquanto tal, já não se verificava há muito tempo. A última foi uma tentativa com menor dimensão e que falhou, a “refiliação” no PSD. 

 4.Seguro teve um papel paradoxal. Fez todas as escolhas por razões estritas de sobrevivência e, porque não tinha nada a perder, e acabou por ser revolucionário malgré lui-meme. As eleições primárias foram convocadas pelas piores razões do mundo: eram um subterfúgio de Seguro para continuar na liderança do PS mais uns meses, na esperança de que qualquer crise lhe desse uma oportunidade, pressupunham uma estratégia negativa de desgaste do adversário, que o tempo longo sempre traria, e criavam uma estranha figura, a do “candidato a primeiro-ministro” em vez de ser para o líder do partido. Seguro queria tornear o facto de que, tendo blindado os estatutos para nunca cair a meio do mandato, não podia ter desafios. Enganou-se, e esse foi um engano pessoal e político: as pessoas consideram Costa melhor do que Seguro, fosse para o que fosse, de porteiro da sede a secretário-geral, e depois, não queriam correr o risco de ver o PS a perder para o PSD e o CDS. Nunca, jamais, em tempo algum. Os tempos não estavam para brincadeiras e “fidelidades”, e em tempo de guerra não se limpam armas. 

 5. As eleições primárias foram pensadas como um expediente, como aliás muitas outras propostas de Seguro, em cima do joelho. Foram mal preparadas e mal conduzidas, até que Jorge Coelho entrou em funções. Eram uma entorse estatutária, cujas complicações ainda estão por se verificar no Congresso. E tornaram-se um sucesso de mobilização depois dos debates, ou melhor, depois de se começar a perceber quem era Seguro. A frase mais certeira da campanha foi quando Costa no último debate, o mais vilipendiado pelo nosso coro de bons costumes e pelo PSD (pudera, Costa ganhou-o claramente de forma muito empática) disse que “os portugueses ficaram a conhecer-te”. Ficaram. 

 6. O acompanhamento jornalístico foi como habitual muito estereotipado, e profundamente conservador, salvo raras excepções. Sem novidade, lá vieram a “campanha sem ideias”, a “campanha de insultos”, a “luta de galos”, o “vazio de soluções para Portugal”, aquilo que de há muito tempo os media dizem de qualquer campanha política sem excepção. Ao mesmo tempo não dedicam uma linha a analisar qualquer documento programático, como fizeram com os de Costa e os de Seguro, enquanto davam título de caixa alta à mais pequena divergência dos candidatos. Sendo assim, por que razão é que esta campanha tão miserável, descrita com tanto nojo e fastio pela comunicação social, mobilizou muitos milhares de portugueses? 

 7. Eu respondo: Porque a campanha teve vida, sangue, suor e lágrimas. A campanha foi confrontacional e isso foi positivo e muito eficaz. Aliás, os aspectos mais interessantes da campanha foram esses mesmos, os momentos em que em vez de dois monos a recitar frases feitas que passam por ideias, os dois homens se atacaram um ao outro, revelando-se como personalidades políticas. Personalidades políticas é personalidade+política, e isso mobilizou as pessoas exactamente em relação inversa à beatice hipócrita com que se recusava a “campanha pessoal”. Em inglês há uma palavra para isto, “sanctimonious”. Os nossos costumes oficiais de salamaleques, uma herança maldita do salazarismo e da censura na nossa vida colectiva, considera o confronto uma baixaria indigna da pompa do estado. Deviam ir ao Reino Unido, o país com mais forte tradição parlamentar, para ver o que é dureza nos debates. Nós cá somos uns anjinhos. O problema destas campanhas, de frente a frente, é que mobilizam a empatia, a simpatia e a antipatia, e isso é melhor do que as estratégias de plástico das agências de comunicação. Revelam logo quem é medíocre e fraco, ou quem é arrogante e ignorante, ou quem é hipócrita e genuíno. São duras porque são cruéis. 

 8. António José Seguro assentou a campanha eleitoral no papel de vítima. Acredito que os poucos votos que teve, teve-os porque a vitimização não é desprovida de vantagens eleitorais. O erro de Seguro é que não se pode ter uma campanha longa a fazer de vítima porque ninguém quer uma vítima para primeiro-ministro. A uma dada altura já ninguém tem paciência e o papel de Calimero vira-se contra o pintainho. Do mesmo modo que a campanha desgastou a intangibilidade de Costa, desgastou a vitimização de Seguro. 

 9. Agora é que vai ser difícil para António Costa e não é um mero problema de expectativas. É um problema de realidades. O objectivo do PS está longe de ser conseguido: o PS sem maioria absoluta pouco conseguirá no contexto actual. A não ser que seja capaz, o que é muito difícil, de fazer um acordo à esquerda, que esse sim mudava. Ou, em alternativa, unir todo o “contra” como Costa disse na campanha, assumindo o programa da Aula Magna. Mas, para isso, tem que mostrar que compreende a dimensão da nossa tragédia e é capaz de lhe responder. António Costa tem que ser capaz de transportar a mobilização que conseguiu no PS para o país. Não é fácil, sem rupturas claras, que até hoje não quis fazer. 

 10. Mas o PSD, que amava Seguro com o “coração, como disse Marcelo Rebelo de Sousa, referindo-se a seu próprio órgão vital, dificilmente vai perceber o que lhe está a acontecer. Fica-se pela oposição a Costa, quase ao nível da oposição que fazia na autarquia de Lisboa, e não quer, porque não pode, mudar nada. Nem sequer compreendeu que as primárias do PS, em conjunto com a vitória expressiva de Costa, soam a um sino muito preocupante e que nada disto podia hoje acontecer na paz de um cemitério, com os mortos bem firmes a defender as campas, que é hoje o PSD. 

 11. A verdade, verdadinha, é que na semana em que o PS andou a fazer as tão menosprezadas eleições internas, com tantos “insultos” e vazio de ideias, o PSD andou às voltas com a Tecnoforma, os esquecimentos bizarros de Passos Coelho, e o que mais se virá a saber dessa misteriosa ONG criada para ir buscar negócios para a Tecnoforma. Alguém troca uma coisa por outra?

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© José Pacheco Pereira
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