ABRUPTO

29.8.14


(versão da )
PORQUE É QUE NÃO VALE MUITO A PENA TER ESPERANÇA …


... como no Inferno quando se entra pela porta maldita e se deixa a dita esperança à entrada. Agosto é um bom mês para percebermos tudo. Milhares e milhares de jovens que não lêem um livro, passam o mês em festivais no meio do lixo, do pó, da cerveja e dos charros. Milhares e milhares de adultos vão meter o corpo na água e na areia, sem verdadeira alegria nem descanso. Outros muitos milhares de jovens e adultos nem isto podem fazer porque não tem dinheiro. No interior, já que não há correios, nem centros médicos, nem tribunais, proliferam as capitais, da chanfana, do caracol, do marisco, do bacalhau, dos enchidos, da açorda, as "feiras medievais" de chave na mão, as feiras de tudo e mais alguma coisa desde que não sejam muito sofisticadas. Não é uma Feira da Ciência, nem Silicon Valley. 

As televisões, RTP, SIC e TVI “descentralizam-se” e fazem arraiais com umas estrelas pimba aos saltos no palco, mais umas “bailarinas”, nem sequer para um grande público. Incêndios este ano há pouco, pelo que não há imagens fortes, ficamos pelo balde de água. Crimes violentos “aterrorizam” umas aldeias de nomes entre o ridículo e o muito antigo, que os jornalistas que apresentam telejornais com tudo isto gostam de repetir mil vezes. Felizmente que já começa outra vez a haver futebol, cada vez mais cedo. O governo, com excepção das finanças e dos cortes contra os do costume, não governa, mas isso é o habitual. 

A fina película do nosso progresso, cada vez mais fina com a crise das classes ascendentes, revela à transparência todo o nosso ancestral atraso, ignorância, brutalidade, boçalidade, mistura de manha e inveja social. No tempo de Salazar falava-se do embrutecimento dos três f: futebol, Fátima e fado. Se houvesse Internet acrescentar-se-ia o Facebook como o quarto f. Agora não se pode falar disso porque parece elitismo. Áreas decisivas do nosso quotidiano hoje não são sujeitas à crítica, porque se convencionou que em democracia não se critica o "povo".

Agosto é um grande revelador e um balde de água fria em cima da cabeça para aparecer na televisão ou no You Tube. Participar num rebanho, mesmo que por uma boa causa, podia pelo menos despertar alguma coisa. Nem isso, passará a moda  e esquecer-se-á a doença. Pode ser que para o ano a moda  seja meter a cabeça numa fossa séptica, a favor da cura do Ebola.

Assim não vamos a lado nenhum. Como muito bem sabem os que não querem que vamos a qualquer lado.

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28.8.14



NA MORTE DE EMÍDIO RANGEL


NA TSF 

Sempre que Emídio Rangel se apanhava no lugar certo e no momento certo – e quer na TSF, quer na SIC esse lugar e momento certo foi o fim do monopólio de estado sobre os media audiovisuais – ele mostrou as suas excepcionais qualidades de inovador, arrastando atrás de si equipas a quem ele deu uma forte identidade, agressividade e competitividade. Na TSF, fê-lo num momento de transição que transformou uma rádio quase pirata na referência noticiosa, no meio de uma enorme turbulência, afrontando o poder político que estava pouco habituado a ser tratado sem o “respeito” institucional que vinha da antiga Emissora Nacional e apenas se “avermelhara” no PREC. A retaliação era feita de muitas formas inclusive pelo controlo do sinal da emissão, que ultrapassava muitas vezes o permitido, mas umas vezes fazia-se de conta e outras lá apareciam os inspectores atrás dos “cristais”. Recordo-me de muitas vezes Rangel dizer quando havia uma matéria mais quente, “lá vêm os homens ver os cristais”. 

Hoje, esta TSF já não existe em grande parte. Está cheia de programas, patrocínios e anúncios institucionais e em muitas matérias segue uma linha editorial muito próxima do governo e da ideologia do “ajustamento” do que qualquer canal noticioso televisivo, seja a SICN, seja a TVI24. A crise, as atribulações da sua propriedade, o afastamento de jornalistas seniores, pesaram muito na sua perda de vitalidade e inovação. Os noticiários tornaram-se pouco acutilantes em matérias nacionais e as debilidades de redacção são evidentes. É verdade que Rangel que a fez, também ajudou a desfazê-la, numa fase mais complicada do seu percurso profissional, mas nem por isso os seus méritos de conjunto são menores. 

NA SIC 

Na televisão, Rangel mostrou a mesma capacidade “revolucionária”. Sem Emídio Rangel a criação de uma televisão privada em Portugal diferente da RTP, com a renovação que trouxe aos conteúdos e às formas, com as suas qualidades e os seus defeitos, demoraria muitos anos a dar-se, se se desse. Na SIC, Rangel mudou quase tudo, os programas de informação, os de entretenimento, os noticiários. Também na SIC, como na TSF, mostrou a sua capacidade de criar equipas que lhe eram pessoalmente dedicadas e a quem ele dava a “camisola” de uma causa. Foi buscar à RTP não só aqueles que eram mais conhecidos, mas muitos que eram fundamentalmente talentosos e a quem a agilidade e a liberdade da SIC deram a possibilidade de mostrar o que valiam. Ao mesmo tempo que começava a “fazer” a SIC, Rangel estudava tudo o que podia e encontrava sobre televisão, não se limitava a inventar do nada. Ouvia tudo e todos e se encontrasse boas ideias, permitia a sua realização, promovendo os melhores, mesmo que sem nome já firmado.

Mas, com o tempo, a televisão que fazia era cada vez mais cara e começava a não resistir à competição com outro homem que “fez” a televisão em Portugal, José Eduardo Moniz. O Big Brother foi a causa próxima, mas já havia na televisão privada um curso subterrâneo dos acontecimentos que iria precipitar a queda da SIC do lugar cimeiro e as tensões que levariam ao afastamento de Rangel. Rangel tinha mau feitio e, nas relações pessoais, ou as coisas corriam bem ou, quando corriam mal, corriam muito mal. E Rangel deixou a SIC para uma experiência infeliz na RTP, com a SIC a maltratá-lo a ele e ele a maltratar a SIC. 

Quando deixou a RTP, Rangel um dos homens que mais sabia de rádio e televisão em Portugal, ficou efectivamente desempregado, e com uma colecção de inimizades considerável que o impediam de ter alguma esperança de regressar ao escasso panorama de estações televisivas. Ele sabia-o bem. Lançou-se nalguns projectos que não tiveram andamento nem sucesso e coleccionou algumas amarguras no fim da vida. Mas as coisas são como são, e nada disso retira o enorme papel que teve na comunicação social pós-25 de Abril. 

 O QUE DEVO A EMÍDIO RANGEL 

Devo muito a Emídio Rangel, um homem com que sempre tive muito boas relações e apreço mútuo. Nunca aceitei o “esquecimento” a que foi votado na SIC, – por exemplo, o seu retrato não se encontrava nas paredes da estação, - e sempre que tive oportunidade referi o seu papel na própria SIC, quer no meu programa Ponto Contraponto, quer quando do aniversário do Flashback, agora com o nome de Quadratura do Círculo. De todas as vezes que isto acontecia, Rangel falava-me ou escrevia-me “agradecendo”, coisa que sempre lhe disse não ter qualquer sentido, a não ser pelo facto de haver silêncio a mais à sua volta.

Tive o privilégio de fazer parte de dois dos seus programas mais inovadores, o Flashback na TSF e o Terça à Noite na SIC. Rangel fez parte do painel inicial do Flashback, e recordo-me de ele muitas vezes dizer, quando havia críticas de que “estávamos a falar ao mesmo tempo” (eu, o José Magalhães, o Vasco Pulido Valente, o Nogueira de Brito e depois o Miguel Sousa Tavares, na fase inicial), “que nunca vira ninguém mudar de canal nesses momentos”. Ele queria debates a sério, mesmo que muitas vezes caóticos, mas cuja empatia, fosse simpatia ou antipatia, prendia quem os ouvia. Numa altura em que os debates políticos contavam com a participação pomposa e ortodoxa de delegados partidários, o Flashback fazia toda a diferença.

Há, por último, um aspecto mais invisível da acção de Rangel, aqui junto com Balsemão, e os actuais responsáveis da SICN, de resistência às pressões quotidianas, repito quotidianas, do poder político, para domar o tipo de informação e debates que ele, Rangel, introduziu na comunicação social portuguesa. Este é um aspecto menos conhecido, mas central na nossa liberdade. E foi o que Rangel ajudou a fazer: a nossa liberdade.

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© José Pacheco Pereira
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